A evolução do futebol moderno tem proporcionado a diferentes agentes do treino ricas reflexões sobre o futebol pensado. A frase “os que pensam que o futebol se joga com os pés são os mesmos que pensam que o xadrez se joga com as mãos” aplica-se na perfeição. Contudo, é bem mais complexa quando entramos no campo da tomada de decisão e como o cérebro é realmente usado, e sobretudo moldado num jogo cujas velocidades de decisão e execução continuam a aumentar.
PRINCÍPIOS BASE:
Antes de qualquer desenvolvimento, existe um princípio transversal, que é o da singularidade. Cada atleta tem a sua própria capacidade de aprendizagem e adaptabilidade perante um determinado estímulo ou conjunto de estímulos. Portanto, não existem receitas nem fórmulas mágicas.
Em segundo lugar, qualquer treinador que queira estimular a capacidade decisional não pode pôr em prática uma metodologia fechada e analítica. Ou seja, sem decisão ou limitada a X decisões. Quem é limitado a X decisões, nunca encontrará a decisão X+1, onde toda a criatividade estaria a ser explorada na sua plenitude, mas entretanto castrada pelo agente responsável por potenciá-la.
Em terceiro lugar, a aplicação de uma metodologia deve ir ao encontro das necessidades específicas do atleta, através de métodos direccionados e orientados. Deste modo, demonstra um cuidado particular do treinador para com o atleta, gerando maior compromisso por parte do mesmo. Já dizia Ralph Waldo Emerson que “se só aprenderes métodos, vais ficar preso a esses métodos, mas se aprenderes princípios, podes desenvolver os teus próprios métodos”. Não vale de nada adaptar metodologias e exercícios vistos na Internet, se não vão ao encontro das necessidades dos nossos atletas. Parecerá interessante a curto prazo, mas muito pouco útil a longo prazo na aquisição de novas competências/correcção de incompetências.
TOMADA DE DECISÃO: O QUE É ISSO AFINAL?
“Aquele Guarda-Redes tem uma boa tomada de decisão.” O que é isto afinal? Quando se afirma isto, sabemos realmente do que estamos a falar? O que é a decisão? Saberemos mesmo qual a capacidade decisional de um Guarda-Redes e a que processos de treino foi ele submetido?
Trago para esta pequena dissertação António Damásio: “O processo de apresentação mental de conhecimento só é possível se duas condições se verificarem. Primeiro, temos de ser capazes de usar mecanismos de atenção básica (concentração específica) que permitam a manutenção de uma imagem mental na consciência com a exclusão relativa de outras. Segundo, é necessária a existência de um mecanismo de memória de trabalho básica (alcançada pela especificidade), que mantém diversas imagens separadas, durante um período relativamente extenso.”
Por outras palavras, concentração específica que foca o atleta no objectivo principal da tarefa, e especificidade do estímulo que garante a construção de mecanismos de memória direccionada para esse mesmo objectivo. De que modo transportar estes conceitos para a construção de um exercício de treino? Desde já, definindo um e só um objectivo principal para o exercício e o treino, de modo a aumentar o foco do atleta na especificidade do mesmo. Depois, garantindo variabilidade decisional, permitindo ao atleta submeter-se a diferentes problemas dentro do objectivo específico. A este, deverão estar associadas diferentes respostas, controladas e orientadas pelo treinador. Por fim, um feedback orientado para o objectivo principal, aumentando o transfer de conteúdos específicos. Um feedback relativo a algo secundário ou terceário transformar-se-á em ruído e elemento de dispersão, possivelmente comprometedor para a aquisição/consolidação de conhecimento.
COMO EVOLUIR O PROCESSO DE TREINO?
O progressivo sucesso na resolução dos problemas deve criar no treinador uma necessidade de aumentar a complexidade do exercício, manipulando as variáveis tempo, espaço e número, para criar novos e mais difíceis problemas. Tal progressão pedagógica, do fácil para o difícil, do simples para o complexo, do conhecido para o desconhecido. O treinador deve ir complexificando a zona de conforto do atleta, criando constantes mutações e evoluções contextuais. Metaforizando com a condução, trata-se de passar de uma condução em linha recta numa estrada vazia, para uma hora de ponta numa capital cosmopolita, com semáforos, peões e radares, mas mantendo a destreza e a qualidade decisional para não bater com o carro.
A repetição deste tipo de dinâmicas permite criar rotinas, transformando-as de extrínsecas em intrínsecas, como parte integrante do atleta. É como integrar um canivete suíço interno, com diversas ferramentas adaptáveis para qualquer problema. Senão vejamos este texto de Vygotsky: “As relações com um conhecimento anteriormente possuído dirigem a atenção e a memória do indivíduo, orientando a sua percepção e facilitando a sua aprendizagem. Os mecanismos mediadores são interiorizados e o indivíduo deixa de operar com sinais externos, passando a usar as representações mentais, os conceitos, as imagens visuais, as palavras, realizando actividades mais complexas, nas quais é capaz de controlar deliberadamente as suas acções, através de recursos internos.”
As representações mentais nada mais que são estas ferramentas internas, passíveis de serem utilizadas num determinado contexto. O trabalho que é realizado com os princípios anteriormente referidos, permite transformar estes comportamentos de inconscientes em conscientes. Analisando contextos e variáveis, através de linhas orientadoras e critérios de êxito, o atleta tem outra capacidade para discernir que decisão tomar, apenas com recursos internos (pensamento autónomo) ao invés dos recursos externos (dizerem-lhe o que fazer). Não pode haver maior satisfação num treinador que ver o seu Guarda-Redes com capacidade para discernir uma decisão correcta de uma errada, imediatamente após a acção. Quando esse momento é atingido, o Guarda-Redes já desenvolveu ferramentas internas, um raciocínio autónomo e domina os critérios de êxito de forma consciente e automática. Passa a ter capacidade para analisar decisões em conjunto com o treinador, e o seu conhecimento do jogo permite questioná-lo sobre situações diferentes, enriquecendo o processo de treino.
E A CAPACIDADE TÉCNICA?
Todas as acções de um Guarda-Redes envolvem uma análise, uma percepção, uma adaptação e uma acção técnica. Sim, a acção técnica no fim. Um elemento finalizador de todo um processo de percepção-acção. A técnica é fundamental, mas com as ferramentas internas adequadas, conhecimento do jogo e um raciocínio autónomo, qualquer Guarda-Redes vai estar muito mais perto de tornar fácil aquilo que parecia difícil de resolver. Torna-se demasiado naïve limitar o treino de Guarda-Redes às vertentes técnica e física. Que lógica tem trabalhar todos os sistemas energéticos e grupos musculares, e ignorar a central que os comanda?
(este artigo não foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico)
João Garcia (@joaogarcia_gkcoach)
Coordenador do Departamento Treino de Guarda-Redes Feminino no GD Estoril Praia