A real formação: O treinador que não deixa que se percam cidadãos (e guarda-redes também)

Vai ser duro… mas é necessário falar disto.

Resultado. Foco nos resultados. O esquecimento premeditado de todo o processo em busca, exclusivamente, do resultado final. Resultados e mais resultados. É só isso que interessa certo? Seja em rendimento ou em formação, são raros os casos em que se buscam os alicerces, desde a base, para esse sucesso.

Ao dirigente que chega ao futebol, nada quer saber do processo de jogo. Interessa que as equipas que coordena, e os treinadores que contrata, tenham resultados. Muitos procuram benefícios monetários por venda dos seus activos, mas outros querem apenas estar dentro da modalidade e criar redes de contactos. A formação de jogadores não é seu tema. É de quem está às suas ordens no treino. E é legítima esta hierarquia, apesar de se poder olhar para o atleta como mais que um activo. Felizmente ainda existem aqueles que se preocupam com a valorização e desenvolvimento da prática desportiva nos clubes/localidades e formação de jovens e futuros cidadãos. Nem tudo pode ser mau… mas talvez aqui está a excepção e não tanto a regra.

Ao treinador principal, para manter o lugar ou estatuto, interessa apenas ganhar. Formar jogadores? Outros que façam. Ou então assume-se que o atleta já sabe tudo. Seja em iniciados, juvenis ou juniores, o treinador principal quer estar nesse patamar para subir para outro de rendimento. E leva o rendimento aos nossos jovens, negligenciado parte da sua formação, para se credibilizar/validar a si mesmo. Valorizar o atleta? Que sejam outros a fazer. Não são poucos os casos de atletas que tiveram rendimento de forma muito prematura e depois não existiu continuidade em idade adulta. Querem-se adultos muito cedo e não se entende que o atleta, para continuar a jogar, tem de aprender a gostar do jogo e isso não é obrigatoriamente aprender a gostar de ganhar. Só ganhar, seja de que forma for. As duas conjugam-se e muitas vezes é na parte relacional que está parte da solução.

Ao treinador de guarda-redes interessa que o seu atleta não sofra golos. E passam essa visão aos seus guarda-redes. Como se não sofrer golos seja a única (!) validação da sua competência. Mas isto não é um problema apenas do treinador, mas de quem o coordena/lidera/ e avalia. Quem avalia o treinador de GR? E como se avalia? Quais são os objectivos que se tem presentes para os mesmos?

Mas imaginemos que era apenas um problema do treinador de GR: é mais valioso, mesmo que os resultados não apareçam logo – porque não há processos consolidados sem erros que o suportem-, não sofrer golos (seja de que forma for) ou procurar valorizar o seu atleta, na totalidade de valências, para ele ter capacidade de render a curto e principalmente a longo prazo? Procurar que ele tenha prazer em jogar ou que tenha prazer em apenas não sofrer golos?

Muitas são as vezes em que não é difícil dar resultados ao GR. Se ele dominar o básico, é retirar-lhe tomada de decisão complexa e reduzir-lhe espaço de acção. O conforto dele ser a baliza apenas e não a área. Que em vez de receber uma bola com os pés e procurar alternativas, que bata logo. Que entre em situações de reacção, em cruzamento ou 1×1, em que não consegue dominar a decisão do adversário e não tem iniciativa e proactividade. Também se fazem guarda-redes assim (e bem) mas não se procura, na formação, que os GRs sejam “algo além” do seu conforto e estimula-se um conforto que o atleta diz ter… em que muitas vezes não se conhecem a si mesmos para saber definir com precisão no que são bons ou maus. E este conforto de redução de responsabilidades parece ser bom para o atleta e treinador. Porquê? Porque a probabilidade de erro é menor e assim ninguém julga ninguém. Mas andamos a crescer num ambiente ilusório. E aqui entronca algo relevante como: na formação formam-se (passe a redundância) atletas ou futuros cidadãos também?

Um treinador tem um papel crucial na vida dos nossos jovens, seja ele treinador de futebol ou de outros, que é de formar futuros cidadãos. Adultos responsáveis, que se conhecem a si mesmo, que tenham bons valores, saibam trabalhar em equipa e tenham coragem nas suas decisões. O futebol, como desporto colectivo, é um espaço formativo gigante para as pessoas. Seja de quem lidera ou de quem é liderado. Tenham 40 anos… ou 13. É uma real escola de valores.

“O que queres no futebol? Porque ainda jogas?” são questões que se devem fazer desde cedo a um atleta. Porque um treinador não treina jogadores com apenas um tipo de motivações. E muitas vezes é com essa atenção personalizada que se geram os maiores ensinamentos. Há jogadores que querem chegar ao topo… e aqueles que apenas se querem divertir a fazer algo que gostam. E ambos são legítimos. E podem-se cruzar. É responsabilidade do treinador em saber gerir estas expectativas e vontades e tentar zelar pelos seus desejos e sonhos.

Uma das formas deste zelo e reconhecimento é dar tempo de jogo a cada um dos atletas que gere. Aplicando aos guarda-redes, é igual, com uma pequena diferença por haver espaço para esse cuidado personalizado: no treino específico, procurar de forma personalizada a melhoria das suas fraquezas. Nesta atenção, que o atleta sente, está a maior das reciprocidades. O reconhecimento real para o treinador de guarda-redes, e sua mais sincera avaliação, parte dos atletas e não de quem está de fora. São eles que dirão o que está certo ou não. E se o jogador confia no seu treinador e nos ensinamentos que passa, acreditem… é tudo mais fácil e natural.

Nem sempre é possível, num microgrupo de GRs de 3/4 elementos por exemplo, que todos tenham tempo útil de jogo numa época. Pelas diferenças de rendimento em cada um, pela forma como se relacionam com os colegas e a interpretação que tenham da forma de jogar da equipa. Mas se for possível, que se avance para isso. Com coragem e convicção. Faz algum sentido, em equipas com resultados avolumados por exemplo, jogar sempre o mesmo GR? Para fomentar um atleta, andamos a “matar” outros dois ou três que os únicos estímulos que têm num ano é de servirem de “bengala” para um treino específico que só está a melhorar/valorizar um atleta. É nesta visão que começa a entrar o rendimento na formação de forma muito prematura. Ser suplente ou não ser convocado devia ser uma grande escola de formação de pessoas. Mas como todos os locais, lutar para não ter reconhecimento é duro. Mas ter a recompensa por esse esforço é uma das melhores sensações. E são gestos muitas vezes tão acessíveis de dar que se menospreza o valor destes. É importante valorizar, por via de treino ou jogo, todo o microgrupo de GRs que, mesmo que tenham motivações ou potencialidades distintas. Daqui surgem amizades, valências humanas para aplicar na vida no futuro e, também, futuros guarda-redes noutros locais. Quem não joga hoje… talvez jogue amanhã. Basta mudar o contexto e isso torna-se uma possibilidade. Daí que gosto de dizer que se deviam formar guarda-redes “para a a vida”, em campo e fora dele, e não para um modelo, um clube ou um local. Temos essa responsabilidade. Nós é que críamos a importância dos guarda-redes no futebol. Se não formos nós a zelar por isso… ninguém o irá fazer. E entretanto serão cada vez menos nas balizas… não devem ser apenas os Rui Patrício, Neuer, Ter-Stegen, Oblak, Ederson, Alisson, etc etc a criar vontade dos meninos/meninas serem guarda-redes. Não podem ser apenas esses, apesar de ser importante a existência de referências. Parte muito do treinador. E que não se escondam no conforto da baixa responsabilidade.

Dar responsabilidades é um dos passos e suportar no sucesso e principalmente no erro. Serão melhores guarda-redes mas, principalmente, bons cidadãos. Seja num campo com luvas postas, nos futuros empregos e famílias que pretendam ter. O futebol, e o desporto, é uma escola de vida. E quem está na baliza… é um dos maiores pontífices dessa escola.

  • Gonçalo Xavier, Fundador e Gestor d’A Última Barreira e Treinador de GR